Ilustração Alberto Giacometti
 

 

Nos caminhos sem fim de Paris:
um encontro com Giacometti

Rodrigo Freitas Rodrigues

























Graduado em artes visuais pela Escola de Belas Artes da UFMG, Rodrigo Freitas é pintor e gravador. Participou de várias exposições, entre elas: FIAT Mostra Brasil, Fundação Bienal – Porão das Artes, São Paulo, 2006. Pinturas, Galeria da EBA, 2006. Gravuras, Saguão da Reitoria da UFMG, BH, 2006. A17, Centro Cultural da UFMG, BH, 2006/5/04. Novos Ilustradores, Biblioteca Central da UFMG, BH, 2006. Pictórica, Palácio das Artes, BH, 2006; premiado no salão Jovens Gravadores do Mercosul, Uruguai, Montevidéu, 2005; Cidades Visíveis, Galeria de arte da CEMIG, BH, 2005. 29º Salão de Arte Contemporânea de Ribeirão Preto, Ribeirão Preto, SP, 2004; (individual) galeria de arte do BDMG, BH, 2004.


Resumo

O presente artigo versa sobre a imagem alegórica da cidade como registro da flânerie. O texto pretende revelar possíveis correspondências entre as imagens poéticas sugeridas nos versos de Baudelaire e a Paris sans fin, cidade gravada por Giacometti. Em ambos os casos o espaço urbano assume uma outra conotação, a qual excede a mera ordem geográfica e física de seus elementos, para também sugerir aspectos simbólicos e metafóricos. A leitura desses registros poéticos e artísticos faz do leitor contemporâneo um flâneur, ao permitir deambulações pelas ruas, narradas nas páginas de um livro, ou impressas nas folhas de um álbum de gravuras. Isso acontece porque a errância pós-moderna prescinde da experiência direta do mundo e a cidade pode ser apenas uma imagem alegórica.


Palavras-chave: arte, poesia, gravura, flâneur, imagem da cidade.


Introdução

A grande cidade é a imagem alegórica da modernidade, novidade do século XIX, se a considerarmos em seus aspectos de planejamento arquitetônico e urbanístico. Nesses espaços citadinos, povoados por uma multidão de seres provenientes das regiões mais diversas, as características fundamentais são o individualismo e a ausência de laços comunitários. As referências sócio-culturais não mais orientam o cotidiano dos indivíduos, pois essa função foi delegada a um objeto cada vez mais freqüente na sociedade burguesa e capitalista: o relógio, a disciplinar a multidão com seu tempo mecânico, abstrato, tempo de produção e lucro. Nesse processo de fetichização da mercadoria e conseqüentemente de coisificação do ser a que todas as esferas sociais foram submetidas (inclusive a artística), Baudelaire é figura fundamental para a investigação da nova ordem instaurada pelo capitalismo e materializada na imagem da metrópole. Baudelaire sempre teve consciência da subserviência da arte em relação ao mercado. Para ele, que procurava entender o que ocorria a seu redor, as grandes cidades do século XIX não podiam ser descritas senão pelos sentimentos de estupor, espanto e fascínio. Sua cidade poética surge, portanto, de um lugar impróprio, do relato de cenas cotidianas em que não se acreditava ser possível brotar o sentimento. Bem mais tarde, exclamará Drummond, “uma flor nasceu na rua!”, e essa mudança na concepção artística ditará novas diretrizes para o processo criativo, bem como para a própria figura do artista, que não mais se identificará como um ser iluminado, acima da miserável condição humana mas, ao contrário, assumirá por completo as características de homem comum, livre para viver os prazeres da cidade. E eis que surge a figura do flâneur, um ser que deambula pela cidade e se perde na massa anônima da turba, que sempre observa e, incessantemente, produz relatos, sejam eles literários, imagéticos ou filosóficos. Baudelaire e Giacometti, cada um a seu tempo, foram flâneurs e incansáveis retratistas da sociedade moderna, revelando através dos registros que deixaram, as inúmeras Paris em que ambos habitaram.

Um encontro com Giacometti

O homem está na cidade como uma coisa está em outra e a cidade está no homem que está em outra cidade... Ferreira Gullar, "Poema sujo"

Nesse trecho de "Poema sujo", publicado em 1975, num livro de mesmo nome, Ferreira Gullar apresenta uma imagem da cidade na qual se apreende a concepção moderna do ambiente: homem e cidade formam juntos a paisagem urbana, espaço símbolo da modernidade e resultado de transformações econômicas, políticas e sociais seguidas por mudanças na própria estruturação e na interpretação do tempo e do espaço.

A metrópole tem sido um dos pontos cruciais de exploração da modernidade, pelo menos a partir da segunda metade do século XIX, quando sua representação passa a não se restringir ao mero lugar geográfico e físico e começa a se apresentar também como um lugar simbólico que materializa as inquietações humanas. Cria-se, como num jogo de espelhos, a correspondência entre habitante e ambiente, um se projeta no outro. O homem moderno se sente em casa onde quer que esteja e

a multidão é seu universo, como o ar é o dos pássaros, como a água, o dos peixes. Sua paixão e profissão é desposar a multidão. Para o perfeito flâneur, para o observador apaixonado, é um imenso júbilo fixar residência no numeroso, no ondulante, no movimento, no fugidio e no infinito(1).

É dessa forma que Baudelaire (1821-1867) descreve a figura do flâneur, como alguém que deambula, indefinidamente, pelas ruas da cidade, secretamente sintonizado e atento à sua própria história, mas receptivo a toda sorte de aventuras, sejam elas estéticas ou eróticas. Tanto Baudelaire quanto Giacometti (1901-1966), flâneur e pintores da vida moderna, revelaram com maior precisão a transitoriedade como a alma da modernidade.

Ambos procuram uma interioridade na cidade moderna: Paris, a capital do século XIX, cidade submersa (2) nos versos de Baudelaire, cidade sem fim nas impressões de Giacometti. Entre a metrópole e sua imagem, seja ela escrita ou gravada, está sempre o corpo errante do artista por entre livrarias e butiques, monumentos e palácios, buscando com seu olhar arguto o secreto drama humano que se esconde por detrás de cada fachada, nas paredes brancas dos edifícios, nas faces da multidão.

Em um dos tantos percursos que desenham a cidade é que nasceu a Paris sans fin (1957–1962), de linhas que se fazem bulevares, cafés, rostos desconhecidos. Os gestos rápidos que conduzem o lápis litográfico revelam, em imagens agentes, as paisagens do cotidiano gravadas às pressas, sem a possibilidade de cancelar ou modificar o que foi feito. Se houve erros será sempre um segredo que só os arrependimentos, escondidos em tantas linhas, o sabem.

Um álbum de gravuras, técnica que de certa forma contrasta com o modo usual de trabalho de Giacometti, foi bastante apropriado para sua necessidade impetuosa de abarcar e compreender toda a realidade, como se fosse possível deter cada instante, parar cada movimento que se desenrola em átimos. Os espaços criados por Giacometti tornam-se o próprio tempo materializado, gravado na matriz litográfica e multiplicado em cada exemplar da tiragem. A respeito dessas gravuras sobre Paris, ele escreve:

Me vejo impaciente para chegar e desenhar fulminantemente tudo o que apreender meu olhar, e toda a cidade se torna de repente um imenso incógnito a ser percorrido, descoberto, numa riqueza sem limites, por toda parte, onde quer que seja(3).

As pranchas litográficas representam toda sorte de eventos que um andante moderno encontra em seu caminho. No emaranhado de linhas agitadas surgem imagens de carros e de fachadas que parecem várias, ou talvez, apenas, divergem no ponto de vista, mas juntas, como os fotogramas do cinema, corporificam um percurso incansável frente à inconstância do tempo e do espaço.

Pelas páginas da Paris sem fim, o leitor acompanha o artista em seu flanar pela cidade, é convidado a andar com ele pelas ruas que se estendem em perspectiva, e atrás das amplas vitrines dos cafés, pode escolher um lugar para se sentar e pedir dois ovos cozidos, duas fatias de fiambre com um pedaço de pão, dois copos de Beaujolais e duas grandes chávenas de café enquanto observa ao lado algumas mesas vazias, mais ao fundo outras mesas com desconhecidos e lá fora o burburinho e o fluxo constantes.

Giacometti desenha Paris da mesma forma que Baudelaire a escreve seus versos. A Paris sem fim é uma narrativa visual, cujo próprio título denota a eliminação de qualquer limitação, quase um suceder ininterrupto de eventos, de momentos, uma sucessão anacrônica, um diário de vida, do modo como quer Lord James ao dizer que “essa obra é um tipo de testamento espiritual: o artista, o homem e a cidade estão unidos e juntos testemunham um ato de amor”.

A primeira imagem desse álbum de gravuras é um convite para se imergir na Paris sans fin. Traços ligeiros silhuetam uma mulher no ato de mergulhar, depois uma rua, um ateliê, fachadas do quarteirão... a cúpula de uma igreja confundida no emaranhado de tantos galhos. Giacometti quer que assim seja Paris, e compartilha a flânerie com cada observador.

As cento e cinqüenta litografias são numeradas como as páginas de um livro, mas ele não deve ser necessariamente lido na ordem apresentada. A narrativa fragmentada, o relato de lugares, os recortes esparsos e sem uma seqüência lógica, permitem que cada andante da Paris sans fin seja, também, um flâneur. Movimentar-se por ela significa configurar um percurso próprio, ordenar as imagens como melhor lhe convier, procurar abrigo na multidão estranha. Nas páginas, caminhos não há, os olhos os inventarão.

Quem chega à Paris sans fin pode caminhar solitário por uma alameda, tendo acima da cabeça galhos retorcidos e nuvens cinzas, ser escoltado por troncos hirtos que se repetem e conduzem o caminhante até um espaço mais amplo, ao fundo. Lá, dois postes emprestam suas escalas à paisagem. Mais além há uma rua, pouco mais estreita que as outras, mas não menos movimentada. Por sorte, a esta hora do dia os transeuntes encontram-se todos nos cafés ou no trabalho, vê-se apenas seus vestígios; os carros a se estenderem por todo o meio-fio.

Caminhando pelo espaço que se abre indefinidamente, chega-se à rua Hippolyte-Maindron e por toda a sua extensão vêem-se paredes brancas e altas, que sussurram no presente as vozes de outro tempo. Mais adiante, há dois carros estacionados, um de cada lado da rua, e um homem caminha pela calçada. Agora ele está prestes a entrar em uma pequena porta. O antigo prédio se abre num ateliê, não muito grande; ou talvez o seja, embora não pareça, por estar completamente abarrotado. Bustos de argila e de gesso povoam o chão, as prateleiras e os bancos, disputam cada vão, amontoam-se debaixo da escada em espiral, enquanto no outro canto, uma mesa se perde na bagunça do cômodo. Telas e papéis confundem suas pernas, recortam-nas e embaralham-nas como os chassis pendurados se confundem com o tampo numa sucessão interminável de planos e linhas. Sobre a mesa, figuras esguias alçam em busca de respiro e se alongam, cada vez mais.

O homem ainda está lá, de costas. Anda pelo cômodo e senta-se numa cadeira de madeira, cruza as pernas, toma um papel e um lápis e começa a rabiscar algo. Acima da pequena escrivaninha que ocupa, alguns livros empilhados ou derramados preguiçosamente pelas prateleiras fixadas nas paredes; desenha um dos cantos do cômodo. É hora de deixá-lo na solidão de seu trabalho e flanar pelo quarteirão e seus arredores, ser mais veloz e dentro de um carro dobrar as esquinas, estar no meio das grandes avenidas sem se preocupar em ser atropelado, passar pela ponte Alexandre III e de lá, contemplar a cidade, já enquadrada pela janela do carro. O andarilho da Paris sans fin, num passeio despretensioso pelas rotinas do cotidiano pode, ainda, caminhar pelos corredores do Musée de l’Homme ou juntar-se aos incógnitos de casacas pretas sentados rente aos balcões dos cafés. No fim do dia, a criatura solitária encontrará aconchego fugaz nos braços de Caroline e de tantas outras de Chez Adrien.

O caminhante deve ser um observador incansável, e mais que isso, um produtor, seja de textos literários, de desenhos e de pinturas, seja de narrativas e relatos, de textos jornalísticos e sociológicos. Inúmeras são, também, as formas de se chegar e percorrer a Paris sans fin. Ela pode ser apreendida como um mapa do cotidiano, em preto e branco, ou como o resultado da constante investigação espacial de Giacometti, que reincide nos contrastes entre cheio e vazio, ausência e presença.

Uma torre de igreja e um poste coincidem nas linhas de um mesmo desenho, mas o observador, por trazer na memória a imagem desses dois elementos, pode imaginar as centenas de metros que os separam, sendo capaz de completar os espaços brancos do papel, de povoá-los com telhados, ramos e fachadas. Do mesmo modo que as figuras desenhadas, apenas no curto intervalo dos olhos ou do nariz até a boca, irradiam a totalidade de seus corpos. Num recurso metonímico a forma se completa e o restante vazio, na verdade, não é assim tão vazio.

Há na Paris sem fim, de Giacometti, a mesma distância fugidia e imprecisa que recai sobre suas esculturas. Os lugares narrados são incompletos, os vãos se acumulam sobrepondo-se e todo o reconhecimento lógico das formas se dá individualmente, em deambulação imaginativa daquele que, seguindo o emaranhado de linhas, tenta percorrer o espaço entre uma imagem e outra, entremeando cada elemento. Na seqüência, funde todos os traços no mesmo plano, como uma teia intrincada de formas e valores na qual a menor profundidade se torna impraticável.

O espaço pode ser configurado de várias maneiras e a cada mudança que se realiza tem-se uma re-significação tanto da imagem quanto do próprio espaço. É a mesma relação dual que se observa nas esculturas de Giacometti, inseridas num lugar também imaginativo, para o qual não cabe nenhuma tentativa lógica de apreensão. A noção de espaço é deturpada pelas figuras esguias, que independente de tamanho ou proximidade do observador, parecem estar sempre à distância.


    Desta terrível paisagem,
    E que jamais mortal olhou
    Esta manhã ainda a imagem
    Vaga e longe, me arrebatou.
    [...]
    Pintor de genial fantasia,
    Sentia em meu quadro sem preço
    A embriagante monotonia
    Da água, do metal e do gesso.
    [...]
    (4)
    

Considerações finais

A imagem da cidade torna-se uma alegoria nos versos de Baudelaire e nas impressões de Giacometti mas, assim como eles, tantos foram os que flanaram pelas ruas das várias metrópoles, sejam elas reais ou fictícias e que, do meio da multidão, vislumbraram uma imagem agente. Não cabe, pois, aqui, identificar possíveis flâneurs, mas interessa o registro que cada um apresenta, interessa a imagem da cidade que se metamorfoseia diante de cada um deles, velando certos aspectos e descortinando outros, incessantemente. Pode-se falar da fantasmagoria de Baudelaire, do surrealismo nas deambulações de Kafka, da vertigem em João do Rio, das disformias nos contos de Poe, do soturno em Lúcio Cardoso, do fantástico nas cidades de Calvino, da luz líqüida de Hopper, do lirismo de Giacometti, do dramático nos cárceres de Piranesi, do individualismo no cinema de Jem Cohen ou da radicalização da figura do flâneur nos trabalhos de Wim Wenders. O ponto em comum nos registros poéticos de cada um deles é o convite ao observador, para que seja também um flâneur pelas cidades escritas, pintadas, gravadas, filmadas ou imaginadas. Constrói-se, assim, um novo paradigma para o flâneur contemporâneo: andarilho em um território povoado de fantasmas e imerso em uma infinitude sem precedentes. A cidade, como constata Ferreira Gullar, que está em toda parte e em lugar nenhum ao mesmo tempo, pode ser uma experiência oculta, velada, virtual, sem termos a certeza de que verdadeiramente exista. A errância pós-moderna prescinde da experiência direta do mundo e a cidade pode ser apenas uma imagem alegórica.

Abstract

This article is about the alegoric cityscape as a flânerie note. The text intends to reveal possible similarities between the poetic images, suggested in Baudelaire’s verses and Giacometti’s engraved city, Paris Sans Fin. In both cases the urban space gets another connotation, it exceeds the mere geografic or phisic order of the elements and even represents symbolic and metaphoric aspects. A modern reader becomes himself a “flâneur” when reads these poetic and artistic notes. It is possible to rove through the narrated streets in a book or printed on the pages of an engraving scrapbook. The post modern wanderings do not need the real experience anymore, and the city can be only an alegoric image.

Keywords: Art, poetry, engraving, flâneur, cityscape.